sábado, 1 de dezembro de 2012


                                           

Capítulo 5- “Aquila non captat muscas”  (A águia não caça  moscas)


Para ser grande, sê inteiro: nada  teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”. F. Pessoa
                                                                                                                            

Antes de pensarmos na leitura do provérbio latino citado acima, gostaria de dizer que a águia é um dos animais mais fabulosos na natureza. Suas qualidades físicas surpreendem qualquer um que as conheça. A visão apurada, sua força e habilidades de caça são fantásticas. Águias caçam e pescam, com uma precisão incrível, presas muito grandes, realmente desafiadoras - circulou durante algum tempo um vídeo em que uma águia com quase dois metros de envergadura capturou um filhote de carneiro montês – mas isso tudo ainda não é o que mais impressiona nesses animais.
Quando uma águia põe mais de um ovo, assim que o primeiro filhote aparece, a águia descarta imediatamente o outro ovo. Caso dois filhotes surjam ao mesmo tempo, ela sacrifica o mais fraco para alimentar o mais forte.
Cuidado! Essa característica da águia pode sugerir que nossos filhos não sejam exatamente nossos descendentes, podem ser projetos e sonhos que nutrimos durante a vida, nesse caso, sim, é importante saber sacrificar coisas menos importantes para garantir a sobrevivência das grandes  – a tarde de descanso ou a companhia dos amigos pode muito bem dar lugar a um bom estudo que antecede uma tarefa sob nossa responsabilidade.
Voltando às águias, há uma história de uma espécie desse animal que em determinada época de sua vida executa um ritual assustador. Essa espécie alimenta-se bem e recolhe-se numa espécie de exílio, no qual ela arranca as próprias penas, as garras e, por fim, quebra o bico contra uma rocha, e espera... O quê? Depois desse suplício doloroso, o que pode essa ave esperar de sua vida?
Ela vai esperar que novas penas, novas garras e um novo bico cresçam e dessa forma ela terá mais um ciclo de vida com força total para manter-se viva com qualidade. Surpreendente, não?
Quem tem a coragem de quebrar todas as suas ferramentas, todas as suas armas de combate? Quem aposta que ao perder tudo, tudo lhe será restituído como antes era? Quem de nós consegue abrir mão das fórmulas que deram certo, embora perceba que estas mesmas fórmulas estão desgastadas e produzindo menos do que costumavam produzir?
A história que relatei pode muito bem ser uma mentira. Nunca vi uma águia dessas, nunca assisti a esse fenômeno, muito menos presenciei sua recuperação. Mas adoraria que fosse verdade, pois essa história é motivadora, inquietante, um desafio para a nossa percepção. Talvez, no meu íntimo, eu admire a coragem dessa águia ao apostar num futuro incerto.
Vamos voltar ao título desse capítulo e pensar o provérbio “Águias não caçam moscas”. Quem é a águia, senão aquela que se movimenta acima do que procura, acima do que necessita? Passou a vida inteira treinando para não desperdiçar um ataque. E, principalmente, não desistiu quando falhou, pois a continuidade do esforço era a garantia da continuidade da própria vida.
Se de seus esforços depende sua existência, o melhor é procurar por algo que valha a pena. Moscas não poderiam nutrir uma ave tão grande quanto a águia. Mesmo que pudesse e quisesse caçar moscas, certamente as moscas não exigiriam dela todo seu potencial, todo o seu desempenho.
Não duvide que na caça há a satisfação de se ter vencido com o esforço próprio um prêmio merecido. Um documentário sobre leões africanos revelou que um leão tem pouca habilidade em atacar uma zebra se ela estiver caída, afinal ele aprendeu a vencer sua presa sob condições que exigem força, agilidade e precisão.
Todos nós já tivemos a oportunidade de conhecer alguém com essas características. Desde a criança que quer alcançar um brinquedo sem a ajuda dos pais, até o jovem estudante, cheio de brio, que prefere uma nota menor como resultado de um trabalho honesto ao 10,0 obtido mediante a fraude da cola.
Ser como as águias implica aceitar e promover mudanças radicais em nosso modo de viver e de pensar. Há  mais ou menos dez anos antes de escrever esse livro, fui aprovado em um concurso público para um cargo no judiciário. Isso me animou muito, pois o salário era bom e a garantia do emprego público estável preenchia uma lacuna de incertezas quanto ao meu futuro profissional.
Mas tudo virou pó. Esperei durante quatro anos pela tão sonhada vaga, que não veio. O prazo de contratação expirou exatamente quando eu era um dos cinco próximos a serem convocados. Foi um dia triste. Achei que havia perdido a grande chance de minha vida. Hoje, porém, estou certo que essa perda exigiu que eu me acostumasse a viver com tranquilidade as incertezas que o futuro nos dá como única garantia.
Parte da nossa serenidade - curiosamente sinto que essa palavra está tão em desuso! – parece se formar não a partir de certezas, mas da consciência tranquila de que não há nada de ruim nas incertezas, pois essas mesmas angustiantes incertezas nos fazem ativos e sensíveis às mudanças que certamente virão.
Um caso desses eu presenciei quando um índio xavante dava uma espécie de entrevista a alunos dos cursos de História e Psicologia na Unesp, no campus de Assis-SP. Quando perguntado por que os índios não se preocupam em deixar bens ou posses aos seus filhos, o índio respondeu tranquilamente que não havia motivo para essa preocupação porque a terra havia garantido a existência de seus avós e de seus pais, tanto quanto garantia a sua própria existência. Daí que não há razão para se pensar que a terra não daria meios de sobrevivência a seus filhos.
Simples assim. Aliás, quando perguntado se deixaria uma casa para ajudar seus filhos a começar a vida adulta, o índio disse que nada o faria tirar de seu filho o prazer de construir sua própria casa. Caso a se pensar.

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